quarta-feira, 19 de julho de 2017

Conselho Tutelar: autonomia, legalidade e independência

Este editorial foi motivado pelas denúncias de "ingerências" que vem ocorrendo em desfavor dos Conselheiros Tutelares em várias cidades mineiras. 




Editorial 

Ingerência: "intromissão, interferência, intervenção, influência, intrometimento, introdução, intermédio,intercessão, interposição, imisção."

Davidson Luiz do Nascimento*

Não é de hoje que práticas de outros poderes constituídos atravessam as atribuições dos Conselheiros Tutelares. Antes de dizer das atribuições dos Conselheiros previstas no artigo 136 da Lei Federal, 8069/90 salienta-se algumas considerações. 

Primeiro, o artigo 136 diz das atribuições dos Conselheiros Tutelares mas também outros artigos dizem destas atribuições, vejamos:  " Art. 95. As entidades governamentais e não-governamentais referidas no art. 90 serão fiscalizadas pelo Judiciário, pelo Ministério Público e pelos Conselhos Tutelares.

No exercício da Função Pública de Relevância o Conselheiro se assemelha ao Servidor Público ao vincular-se administrativamente ao Poder Executivo (município) conforme preconiza a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto do Servidor:  


" [...] Art. 2º - Para os efeitos desta Lei, entende-se por servidor a pessoa legalmente investida em cargo público ou função pública. 

Art. 3º - Os cargos públicos e as funções públicas são criados por lei, em número certo, com denominação própria, jornada de trabalho específica e remuneração pelos cofres públicos municipais. 
Parágrafo único - Os cargos são providos em caráter efetivo ou em comissão. 
Art. 4º - As funções públicas se dividem em: 
I - função pública comissionada, de livre nomeação e exoneração e de recrutamento amplo; 
II - função gratificada, de provimento restrito, vinculada à ocupação de cargo efetivo, sem prejuízo do caráter de livre nomeação e exoneração; 
III - função pública remunerada, provida em virtude de processo eletivo para o exercício de mandato, nos termos da lei. 

Parágrafo único - Às funções públicas, observado o seu regime específico, serão aplicadas as normas desta Lei, no que for compatível com sua natureza." Estatuto do Servidor Público de Belo Horizonte 

Assim o Servidor Público deve agir com boa fé, atender aos interesses públicos como finalidade última da Administração pública e em consonância com os princípios da " legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Portanto, não cabe ao "Servidor no cumprimento de Função Pública de Relevância Social", realizar atividades que não se sustente nas suas atribuições e competências definidas em lei. 

Neste interim, a Lei Federal 8069/90 deixa claro quais são as atribuições dos Conselheiros Tutelares, veja a seguir: 

"Das Atribuições do Conselho
Art. 136. São atribuições do Conselho Tutelar:
I - atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII;
II - atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as medidas previstas no art. 129, I a VII;
III - promover a execução de suas decisões, podendo para tanto:
a) requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança;
b) representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento injustificado de suas deliberações.
IV - encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente;
V - encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência;
VI - providenciar a medida estabelecida pela autoridade judiciária, dentre as previstas no art. 101, de I a VI, para o adolescente autor de ato infracional;
VII - expedir notificações;
VIII - requisitar certidões de nascimento e de óbito de criança ou adolescente quando necessário;
IX - assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente;
X - representar, em nome da pessoa e da família, contra a violação dos direitos previstos no art. 220, § 3º, inciso II, da Constituição Federal;
 XI - representar ao Ministério Público para efeito das ações de perda ou suspensão do poder familiar, após esgotadas as possibilidades de manutenção da criança ou do adolescente junto à família natural.            (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009)          Vigência
         XII - promover e incentivar, na comunidade e nos grupos profissionais, ações de divulgação e treinamento para o reconhecimento de sintomas de maus-tratos em crianças e adolescentes.          (Incluído pela Lei nº 13.046, de 2014)
        Parágrafo único.  Se, no exercício de suas atribuições, o Conselho Tutelar entender necessário o afastamento do convívio familiar, comunicará incontinenti o fato ao Ministério Público, prestando-lhe informações sobre os motivos de tal entendimento e as providências tomadas para a orientação, o apoio e a promoção social da família.            (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)            Vigência
Art. 137. As decisões do Conselho Tutelar somente poderão ser revistas pela autoridade judiciária a pedido de quem tenha legítimo interesse."

Não há nas atribuições referidas a obrigação da realização de visitas aos casos (talvez por inferência esta atribuição esteja implícita no princípio constitucional da " eficiência"). 

Como também não está prevista, em nenhuma legislação, a realização de blitz em bares, motéis, boates, festas e locais inapropriados para crianças e adolescentes frequentarem. 

     Também não está previsto o acompanhamento de depoimentos de crianças e de adolescentes em Delegacias o que cabe a várias instituições outras como aos Advogados públicos e à família. 

Estas atribuições são de outras instituições, entre elas do Comissariado, do "Instituto do Devido Processo Legal" e de outras instituições com poderes de polícia. Cada caso é de competência de outras instituições mas em nenhum deles (exemplos citados) há a obrigação do Conselheiro Tutelar (art. 136).  

Por inferência, há outras atribuições (indiretas) previstas em outras legislações além do ECA. Mas isso não autoriza outra esfera de poder, com exceção do Legislativo, a licença para a criação de novas atribuições para o Conselho Tutelar. 

Mas não é o que está ocorrendo na prática. Tem sido comum a falta de prudência, de respeito e a "ingerência" como prática de outras instituições parceiras. Bem intencionadas, Instituições Públicas lançam cartilhas, revistas, livros e manuais "atribuindo" aos Conselheiros Tutelares competências que não são suas. Esta ilegalidade induz toda uma rede (de proteção, de promoção e de defesa) a tencionarem Conselheiros Tutelares a executarem ações que não estão previstas em leis.

Também, importa salientar, que nas normas da Administração Pública, em relação a expedição de normativas para regular serviços e questões da administração interna, deve ressaltar-se que o seu poder é restrito e o alcance destas normas é limitado aos seus subordinados. Não cabe a outros poderes. 

Normas internas dos poderes criadas pelo cargo administrativo máximo deste poder, não pode ferir a autonomia dos demais. O alcance de seus efeitos é restrito aos seus e estas não alcançam outros por serem menores do que as leis que regulam as atribuições de determinados Serviços, Funções e Servidores. Recomenda-se a prudência ao editá-las. A legislação que vem do poder legislativo é o caminho mais republicano. Ou seja, a UNIÃO cria normas para os Servidores Públicos a ela vinculada, assim os demais poderes. 

Portanto, não cabe, com exceção do Executivo Municipal, do Legislativo ao legislar para os seus representados e, em menor valor, alguma jurisprudência (que não fira os princípios do ECA e a CF88) a criação de normas administrativas para os Conselheiros Tutelares. Ainda assim, as propaladas normas Administrativas não carregam legitimidade se o seu conteúdo venha no sentido de intervir na autonomia da ação do Conselho Tutelar em relação ao atendimento dos casos de sua competência. 

Autonomia esta prevista no artigo 131 e em outros artigos. Além de prever a revisão das tomadas de decisão do Conselho Tutelar (pelo Judiciário ou pelo próprio Conselho ou por decisão judicial pedido por interessados-partes) neste comando normativo. 

Assim, ninguém e nenhum poder, salvo o JUDICIÁRIO se uma das partes envolvidas reivindicar, poderá rever e requerer uma nova interpretação. Assim como o Servidor Público no exercício de sua função não age de má fé, sem previsão legal, também se conduz o Conselheiro Tutelar em seu exercício funcional diário. A sua ação pode ser revista pelo seu Colegiado, a qualquer tempo (art.99), pois as suas decisões são circunstanciais, contextuais, parciais (de acordo com a demanda motivadora) e imbuída do caráter pedagógico (art. 100).

O Conselheiro Tutelar procura não "errar" e se o faz, atribui-se este à instituição que poderá rever a qualquer tempo a ação e aplicar novas medidas protetivas, a qualquer tempo. Em tese ele aplica medidas protetivas decididas no COLEGIADO. Ele sempre age em busca do acerto e da eficiência. Está imbuído da boa fé. Representa a comunidade, inclusive em relação ao Poder que o vincula administrativamente. Pode a Instituição que ele faz parte, inclusive representar judicialmente contra o poder executivo municipal se o mesmo não ofertar regularmente os serviços públicos requisitados a este "poder que o vincula administrativamente. 

Em relação aos demais entes federados também há a autonomia em sua atuação. Se acaso houver a mesma motivação (oferta irregular de serviços públicos requisitados pelo Conselho Tutelar) pode está Instituição também adotar medidas e a representação judicial não estará descartada.

Pode e cabe ao Conselheiro Tutelar representar contra todo e qualquer poder que venha a violar, descumprir, ou ofertar irregularmente os direitos das crianças e dos adolescentes. Por isso a autonomia em sua ação. Do contrário, outra forma de o contratar para a Função Pública de Relevância Social que exerce sem a participação da população, seria o suficiente para a proteção do ECA. Ao criar o Conselho Tutelar o legislador cuidou disso com muito carinho. Deu poderes independentes ao COLEGIADO para vigiar a referida legislação.   

 A medida protetiva aplicada pelos Conselheiros Tutelar é limitada pelos artigos 101 e 129. Outras medidas também podem ser aplicadas. Mas a legislação colocou estas como as principais e enquadrou a Ação do Conselho Tutelar. Cabe a eles (Conselheiros Tutelares) utilizar-se de outras ações previstas em outras legislações quando em ação diante dos casos. A atuação do Conselheiro Tutelar sem consulta ao colegiado (excepcionalmente) precisa ser imediatamente submetida ao Colegiado. E este é o espaço legal para a legitimação desta ação. 

A ingerência de outros poderes sobre a ação autônoma do Conselho Tutelar tem servido para intimidar os Conselheiros Tutelares. Estas ações, salvo ações do Judiciário motivadas por uma das partes envolvidas no caso em questão, tem causado constrangimentos e tensões desnecessárias na atuação dos Conselheiros Tutelares em várias cidades de Minas Gerais. 

Não é recomendável conduções coercitivas de Conselheiros Tutelares para depor em casos que atende. Este fato o expõe no território onde atua. Colocá-lo diante do violador, que em sua maioria conhece o Conselheiro Tutelar, poderá causar ao mesmo constrangimentos, danos irreparáveis e até mesmo a perda de sua vida. 

Não é recomendável, e "nem há base legal ", a "procura de pelo em ovos com a utilização lupa". Os casos atendidos nos Conselhos Tutelares não pode ser objeto de tentativas de desqualificar a ação de Conselheiros x ou y. O Conselheiro Tutelar não é responsável solidário por nenhum caso. 

"O Conselho Tutelar (instituição) tem o "devir" de zelar pela busca permanente da eficiência no desenrolar dos casos e é o Conselho Tutelar o único responsável pelos casos atendidos pelos Conselheiros Tutelares. Em quase nenhuma hipótese o Conselheiro Tutelar age individualmente. Está é uma característica peculiar desta instituição e desta Função Pública de Relevância Social. E é com Ela que os atores e operadores de direitos nesta frente deve contar ao relacionar-se com o Conselho Tutelar. "

Não é recomendável obrigar (mediante ameaça, coerção e da utilização de métodos não democráticos) Conselheiros Tutelares a participarem de reuniões de redes e fóruns que possuem como princípios a construção solidária do Sistema de Garantias dos Direitos. Métodos dialógicos são mais eficazes.   

Não é recomendável, que nenhuma autoridade pública aja sem levar em consideração o que prevê a legislação sobre a atribuição de seus poderes. É fundamental que sejam evitadas a criação de tensões desnecessárias no dia a dia das instituições parceiras. Coerções e (des)mandos ilegais não contribuem para a boa ação dos parceiros da rede. Os Conselheiros Tutelares agem com amparo nas normas. 

A colaboração histórica ao Sistema de Garantias dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes pelos Conselheiros Tutelares não permite a nenhuma Instituição a tentativa de impor aos mesmos atribuições que não são suas. 

Ingerências não contribuem para a consolidação de práticas republicanas, democráticas e colaborativas, cerne dos princípios constitucionais. O ECA, se compreendido em sua essência e na sua totalidade, nos diz muito de como devemos agir. Na rede não há lugar para soberba, arrogâncias, oportunismos carreiristas e para tentativas de coerções despropositadas contra os Conselheiros Tutelares. Sejamos republicanos. 

 "É sempre bom lembrar, que o copo vazio está cheio de ar"

* Davidson Luiz do Nascimento - Presidente da Acontemg. Conselheiro Tutelar de Belo Horizonte. Graduou-se em Pedagogia pela Faculdade de Educação da UEMG e em Ciências do Estado pela Faculdade de Direito da UFMG. 


Referência Bibliográfica: 
  • Estatuto da Criança e do Adolescente. Acesso em 19 de julho de 2017 - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm 
  • Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Acesso em 19 de julho de 2017 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
  • Inferências a trechos de emails disponíveis nos arquivos da ACONTEMG.
  • Administração Pública no Brasil - Guia Completo http://www.portal-administracao.com/2014/06/administracao-publica-brasileira-modelos.html Acesso em 19 de julho de 2017.
  • Estatuto do Servidor Público da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Acesso em 19 de julho de 2017  http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=legislacao&lang=pt_br&pg=6480&tax=12684
  • Teoria Geral do Estado 


Agende a Capacitação dos Conselheiros Tutelares de sua cidade.

 

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